quarta-feira, 29 de junho de 2011

OS PRESBÍTEROS NO MUNDO, HOJE


Cardeal Dom Cláudio Hummes (Palestra no Curso dos Bispos de 31 de janeiro a 4 de  fevereiro de 2011, no Rio de Janeiro-RJ)

Este Curso dos Bispos quer situar-se no contexto da celebração dos 50 anos do Concílio Ecumênico Vaticano II. Pretende, assim, revisitar os textos do Concílio, reviver o espírito conciliar e  contribuir para a sua retomada, em modo atualizado, na Igreja hodierna. Cinquenta anos constituem um jubileu. Se quisermos inspirar-nos na origem bíblica dos jubileus, veremos que se trata de um ano em que Deus propõe a seu povo renovar a Aliança com que Ele iniciou sua amorosa e decisiva aventura histórica com Israel. Ora, renovar a Aliança, no ano jubilar, significava para o povo eleito elevar a Deus uma solene ação de graças pelos benefícios recebidos nos 50 anos passados, pedir perdão, retomar o primitivo amor com que haviam aceito a Aliança com Deus e olhar confiante para o futuro. O mesmo vale para a Igreja hoje no jubileu do Concílio Ecumênico Vaticano II.  Isso nos recorda as palavras do Venerável Servo de Deus, o Papa João Paulo II, no Grande Jubileu de Jesus Cristo, do ano 2000. Ao conclamar, então, toda a Igreja a ter a coragem de voltar ao alto mar do mundo de hoje e ali  lançar de novo as redes, o Papa repetiu as palavras de Jesus a Pedro: “Duc in altum!” e acrescentou: “Estas palavras ressoam hoje aos nossos ouvidos, convidando-nos a lembrar com gratidão o passado, a viver com paixão o presente e a abrir-nos com confiança ao futuro” (Novo Millennio Ineunte, 1). Palavras essas, que poderiam inspirar a celebração dos 50 anos do Concílio!
No que se refere aos presbíteros, o Concílio iluminou significativamente sua identidade,  vida e  missão no mundo atual. Algumas destas indicações conciliares, não todas, pretendo abordar também nesta conferência. Por outro lado, muita água passou debaixo da ponte nestes últimos 50 anos, também no que se refere aos presbíteros na Igreja e no mundo. A cultura mudou, o mundo mudou, o Brasil mudou, também a Igreja e todos nós, de alguma forma, fomos atingidos por estas mudanças. Também os presbíteros. Este é o desafio quando nos empenhamos em continuar a realizar hoje o Concílio, sem esquecer que “Jesus Cristo é o mesmo, ontem, hoje e sempre” (Hb 13,8).
Aprofundar a identidade do presbítero foi com certeza uma das metas principais do documento conciliar “Presbiterorum Ordinis” (PO), baseado na constituição dogmática  Lumen Gentium” (LG) do mesmo concílio. Foi também um dos objetivos do Ano Sacerdotal, encerrado por Bento XVI em junho passado.
Na “Lumen Gentium” podemos ler: “Cristo, santificado e enviado ao mundo pelo Pai (Jo 10,36), através dos apóstolos, fez participar da sua consagração e da sua missão os seus sucessores, isto é, os bispos os quais legitimamente confiaram, em graus diversos, o cargo do seu ministério a várias pessoas na Igreja. Assim, o ministério eclesiástico, de instituição divina, é exercido em ordens diversas por aqueles que já antigamente eram chamados bispos, presbíteros e diáconos. Ainda que não tenham a plenitude do sacerdócio e dependam dos bispos no exercício dos seus poderes, os presbíteros estão unidos a eles na dignidade sacerdotal comum e, pelo sacramento da ordem, são consagrados para pregar o Evangelho, apascentar os fiéis e celebrar o culto divino, como verdadeiros sacerdotes do Novo Testamento, à imagem de Cristo, sumo e eterno Sacerdote (“ad imaginem Christi, summi atque aeterni Sacerdotis”) (Hb 5,1-10; 7, 24; 9, 11-28)” (LG,28).
Convém sublinhar aqui que o sacramento da ordem é dado em sua plenitude somente aos bispos (LG, 21), como sucessores dos Apóstolos. Diz a Lumen Gentium: “Pela imposição das mãos e pelas palavras consecratórias, se confere a graça do Espírito Santo e se impirme o caráter sagrado, de tal modo que os bispos, de maneira eminente e visível, fazem as vezes do próprio Cristo, Mestre, Pastor e Pontífice, e agem em sua pessoa (“ipsius Christi Magistri, Pastoris et Pontificis partes sustineant et in Eius persona agant”)” (LG, 21). Por sua vez, os bispos conferem este seu ministério, mediante o sacramento da ordem, mas em grau subordinado, aos presbíteros para que estes sejam os cooperadores da Ordem Episcopal (cfr. PO, 2).
Continuando a reflexão, a Lumen Gentium explicita que os presbíteros exercem este seu ministério sacerdotal “agindo na pessoa de Cristo (in persona Christi agentes)” (cfr. LG, 28). Mais adiante o texto acrescenta, ainda ao referir-se à identidade dos presbíteros: “Ao exercer dentro do âmbito que lhes compete o munus de Cristo Pastor e Cabeça (“munus Christi Pastoris et Capitis... exercentes”), eles congregam a família de Deus” (LG, 28). Essas expressões referentes à identidade sacerdotal, encontradas na Lumen Gentium, i.é, ser sacerdotes, “que fazem as vezes do próprio Cristo, Mestre, Pastor e Pontífice, e agem em sua pessoa”;  “como verdadeiros sacerdotes do Novo Testamento,à imagem de Cristo, sumo e eterno Sacerdote”; agir “na pessoa de Cristo” e congregar a comunidade, exercendo “o munus de Cristo Pastor e Cabeça”, tudo isso conferido mediante um sacramento especial, são fundamentais para definir a identidade presbiteral e serão amplamente usadas em outros documentos conciliares, principalmente na “Presbyterorum Ordinis”, bem como, depois, nos documentos pós-conciliares da Igreja.
De fato, a Presbyterorum Ordinis afirma que os presbíteros recebem seu ministério específico “conferido mediante um sacramento particular” e “assim, configurados a Cristo sacerdote, de tal modo que possam agir na pessoa de Cristo Cabeça” (PO, 2). Referindo-se ao munus de pregar a Palavra de Deus, o documento retoma o texto da “Lumen Gentium”, n. 28, dizendo: “Exercendo [...] o munus de Cristo Cabeça e Pastor, os presbíteros reúnem, em nome do Bispo, a família de Deus, como fraternidade bem unida, e levam-na a Deus Pai por Cristo no Espírito” (PO, 6).
Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI usam as expressões “in persona Christi” e “in persona Christi Capitis”. João Paulo II, principalmente na “Pastores dabo vobis”(Pdb), acrescenta a expressão “in persona Chirsti Capitis et Pastoris” e também que o sacramento da Ordem configura os presbíteros “a Cristo Cabeça e Pastor, Servo e Esposo da Igreja” (“Christo Capiti et Pastori, Servo et Sponso Ecclesiae”) (Pdb, 4). O Catecismo da Igreja Católica, referindo-se à identidade presbiteral, também usa a expressão “in persona Christi Capitis”.
Por definirem a identidade própria dos presbíteros, estas expressões e sua raiz sacramental têm grande importância teológica e consequentemente espiritual e pastoral.
A essência da identidade do bispo e, em grau subordinado, do presbítero está no serem configurados a Cristo, Cabeça e Pastor da Igreja. Cristo é e permanece sempre o único Cabeça e Pastor do Povo de Deus. Mas os bipos e os presbíteros, mediante o sacramento da Ordem, também o são realmente, mas por participação. Assim, podemos dizer que os bispos, com a plenitude do sacerdócio, e os presbíteros, em grau subordinado, como cooperadores dos bispos, são não apenas discípulos de Jesus Cristo, mas também Cabeças e Pastores da comunidade dos discípulos. Diz o Catecismo da Igreja Católica: “O sacerdote, em virtude do sacramento da Ordem, age “in persona Christi Capitis” (na pessoa de Cristo Cabeça) (n. 1548); e mais adiante diz: “Este sacramento [da Ordem] torna a pessoa semelhante a Cristo por meio de uma graça especial do Espírito Santo, para servir de instrumento de Cristo em favor de sua Igreja. Pela ordenação, a pessoa é habilitada a agir como representante de Cristo, Cabeça da Igreja, em sua tríplice função de sacerdote, profeta e rei” (n. 1581). Nisto está a diferença essencial entre o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial dos ordenados, bispos e presbíteros. Todos os crentes, pela fé e pelo Batismo, tornam-se participantes do único sacerdócio de Cristo, o que a Igreja denominou “sacerdócio comum dos fiéis”. Mas alguns deles são chamados e, então, consagrados por um sacramento particular, o sacramento da Ordem, pelo qual são configurados a Cristo, Cabeça e Pastor do Povo de Deus. Portanto, todos os fiéis, leigos, religiosos e ordenados, são discípulos de Cristo, o que é o mais importante e decisivo para a salvação, mas alguns deles são chamados a serem configurados a Jesus Cristo, Cabeça e Pastor, e assim, além de continuarem discípulos, são também realmente, ainda que por participação, cabeças e pastores da comunidade dos discípulos. Os fiéis, em geral, são discípulos, ao passo que os sacerdotes – bispos e presbíteros - são discípulos mas também presidem a comunidade dos discípulos, como cabeças e pastores, e isto em virtude de um sacramento, o sacramento da Ordem. É o que Santo Agostinho expremiu com lucidez e simplicidade, dizendo aos fiéis: “Convosco sou cristão, para vós sou bispo”.
Em decorrência desta identidade, gerada por um sacramento, o presbítero é presbítero sempre, não apenas algumas horas do dia ou em algumas cricunstâncias particulares. Ele é sempre Cabeça e Pastor da comunidade dos discípulos de Cristo. Também se não exerce nenhum cargo pastoral, como p.ex., de pároco ou outro. Deve, portanto, o presbítero cultivar cuidadosamente esta consciência de ser sempre e em qualquer circunstância pastor da comunidade dos fiéis e assim alimentar em si esta relação com as comunidades eclesiais, uma relação permanente e preponderante. Ele não é mais apenas um membro da comunidade e nem deve agir como se só o fosse, pois ele é, em virtude do sacramento recebido, um pastor. Inversamente, o simples membro da comunidade não pode pretender assumir a identidade de pastor, porque não recebeu o sacramento para tal. Só o sacramento da Ordem confere esta identidade. A própria espiritualidade do presbítero deve assumir esta identidade de pastor. Assim, sua oração, sua dedicação, sua preocupação, seu programa de vida e de ação apostólica, sua responsabilidade quotidiana devem conter, em primeiro lugar, o seu amor e seu dever para com a comunidade dos discípulos de Cristo. Toda a vida do presbítero, onde quer que ele viva ou trabalhe, deve ter, em primeiro lugar, a característica e a expressão de um pastor.
Hoje, com a grande e alarmante crise do decrescente número de presbíteros em muitos países europeus e outros, há uma  busca de novas soluções pastorais para atender às comunidades católicas carentes de presbíteros. Vemos então bispos que unificam várias paróquias em uma só ou apenas congregam de alguma forma várias paróquias e colocam à sua frente equipes pastorais, das quais participam leigos, religiosas e religiosos não ordenados, com a participação de um presbítero ou não. Quando participa um presbítero, por vezes fica prejudicada sua competência única de ser o pastor, na medida em que as responsabilidades do pastor são divididas entre os membros da equipe, não tendo mais o presbítero a última decisão em todos os setores do governo da comunidade. Em outras palavras, o que pertence unicamente ao presbítero, como pastor, em virtude do sacramento da Ordem, pretende-se condividir com outros não ordenados. Ora, Jesus Cristo é o único Pastor e é Ele que, unicamente pelo sacramento da Ordem, confere a alguns de seus discípulos a graça de participar realmente deste seu ministério de Pastor. Portanto, quem não recebeu este sacramento, não pode legitimamente colocar-se nem ser colocado pelo bispo ou pela comunidade à frente da comunidade como se fosse seu pastor, nem uma equipe de pessoas pode assumir este ministério conjuntamente.
Ficam ressalvadas, no entanto, a participação e a colaboração responsável dos leigos/as e religiosos/as não ordenados na missão da Igreja. Aliás, o Concílio Vaticano II deu um grande destaque à missão específica dos leigos no mundo e na comunidade eclesial. Por vezes, estamos ainda viciados por um clericalismo que obstacula esta missão do leigo e não lhe dá todo espaço possível, segundo o Concílio, para participar também na vida e missão da comunidade eclesial. Neste sentido, a constituição de equipes pastorais, que colaboram responsavelmente com o pastor da comunidade pode ser uma forma feliz de acolher a colaboração do leigo, contanto que isso não signifique que ele assuma um lugar pelo qual pretenda substituir o ministério que pertence unicamente ao presbítero como pastor e cabeça da comunidade, precisamente porque o presbítero, e não o leigo, recebeu o sacramento da Ordem.
Também o diácono, ainda que tenha recebido o sacramento da Ordem, no 3º grau, não é configurado com Cristo Cabeça e Pastor e por isso não preside a comunidade dos fiéis. Havia no Código de Direito Canônico um cânone ambíguo sobre esta matéria. Trata-se do cânone 1008 que dizia: “Por divina instutição, graças ao sacramento da Ordem, alguns entre os fiéis, pelo caráter indelével com que são assinalados, são constituídos ministros sagrados, isto é, são consagrados e delegados a fim de que, na pessoa de Cristo Cabeça (“in persona Christi Capitis”), cada qual no seu respectivo grau, apascentem o povo de Deus, desempenhando o munus de ensinar, santificar e governar”. Deste texto, muitos concluíam que, portanto, também os diáconos agem “in persona Christi Capitis” e apascentam o povo de Deus. Era um erro. Por isto, Bento XVI, no Motu Proprio “Omnium in Mentem”, de 26 de outubro de 2009, corrige este erro e modifica o cânone 1008 e acrescenta um 3º§ ao cânone 1009. Eis o texto do Motu Proprio:
 Art. 1. O texto do cân. 1008 do Código de Direito Canônico seja modificado de modo que doravante resulte assim:
"Mediante o sacramento da ordem, por divina instituição, alguns de entre os fiéis, pelo carácter indelével com que são assinalados, são constituídos ministros sagrados, e assim são consagrados e delegados a servir, segundo o grau de cada um, com título novo e peculiar, o povo de Deus".
Art. 2. O cân. 1009 do Código de Direito Canônico doravante terá três parágrafos, no primeiro e no segundo dos quais se manterá o texto do cânone em vigor, enquanto no terceiro o novo texto seja redigido de modo que o cân. 1009 §3 resulte assim:
"Aqueles que são constituídos na ordem do episcopado ou do presbiterado recebem a missão e a faculdade de agir na pessoa de Cristo Cabeça; os diáconos, ao contrário, sejam habilitados para servir o povo de Deus na diaconia da liturgia, da palavra e da caridade".
A compreensão correta da identidade dos presbíteros é essencial para comprender a essência e a importância da sua missão e a espiritualidade que os deve animar. Todos pudemos acompanhar as reflexões do Santo Padre sobre os presbíteros nos últimos tempos, em especial durante o Ano Sacerdotal. Pudemos constatar a crise atual, seja pelo decréscimo quantitativo dos presbíteros em muitos países, sobretudo na Europa, seja pelo triste e absolutamente condenável fenômeno da pedofilia de uma parcela do clero mundial, seja por outras formas de  não observância do celibato, seja pela fragilidade da vida espiritual de muitos presbíteros, como também pela falta de espírito missionário. Por outro lado, devemos também reconhecer com alegria e veneração que a maioria dos presbíteros são homens dignos, dedicados, que gastam sua vida inteira, com fidelidade, apesar de seus limites humanos, na missão que a Igreja lhes confiou.
Por esta razão, no Ano Sacerdotal, a Igreja quis dizer aos presbíteros do mundo inteiro que os ama, os admira, os venera e reconhece o imenso trabalho pastoral que realizam, principalmente nas comunidades locais, no meio do povo. Ali, são os presbíteros que fazem acontecer a Igreja no dia a dia. Ali, eles são os pastores imediatos, que constroem e dinamizam as comunidades eclesiais. Ali, pregam a Palavra de Deus, evangelizam, ajudam o povo a ler a Bíblia, catequizam, reunem o povo fiel para celebrar a Eucaristia e os demais sacramentos, realizam outras formas de oração comunitária e de devoção, congregam a comunidade para discutir, planejar e executar planos de pastoral e de missão, conduzem a comunidade a assumir a solidariedade e a caridade para com os pobres, a promover a justiça social, os direitos humanos, a dignidade igual de todos, a liberdade e a paz na sociedade. A Igreja caminha com os pés dos presbíteros. Quando eles param, a Igreja tem dificuldade de avançar; quando eles se movem, a Igreja se move.  Poder-se-ia continuar a enumerar e a especificar o gigantesco trabalho exercido pelos presbíteros para fazer a Igreja ser luz e fermento na sociedade. Na verdade, exercem um ministério estratégico e essencial para a vida concreta e quotidiana da Igreja no mundo.
Mas os presbíteros são importantes para a Igreja e a sociedade não só pelo que fazem, mas também pelo que são, isto é, por seu exemplo de vida de fé, de vida evangélica, apostólica e missionária, vida de comunhão eclesial, vida espiritual, de oração, de amor a Deus e aos irmãos, em especial aos pobres, vida de despojamento e humildade, vida eucarística, totalmente entregues ao serviço de Deus e do povo, na esperança do Reino futuro e definitivo de Deus. Na verdade, a Igreja deve muitíssimo aos padres e, por isso, deve amá-los, apoiá-los sempre, reconhecer seu serviço e dedicação, encorajá-los quando cansados, doentes, desanimados ou com outras dificulades, alegrar-se com eles quando seu ministério floresce e frutifica e oferecer-lhes sempre, na medida do possível, as condições necessárias para viver digna e eficazmente sua vocação e missão.
Como já disse, há também, por outro lado, densas sombras sobre esse tão importante setor da Igreja, que são os presbíteros em todo o mundo. Trata-se, sobretudo, do fenômeno da pedofilia, da homosexualidade, do concubinato e outras formas de trasgredir a reta conduta exigida de cada presbítero. Várias destas formas de transgressões se constituem em verdadeiros delitos graves, seja diante da moral evangélica, seja diante da lei canônica, seja diante das leis civis.
Quanto à pedofilia, sabemos que o fenômeno não se restringe nem predomina no meio do clero católico, mas trata-se de uma chaga moral em toda a sociedade e que a maioria dos casos ocorrem no interior da vida famíliar, entre parentes. Recentemente, publicou-se na imprensa que, segundo pesquisas, na Europa, de cada 5 crianças uma sofreu ou ainda sofre abusos sexuais. Bastaria falar do turismo sexual com menores, para perceber a extensão deste criminoso fenômeno. Mas isto em nada diminui a gravidade do fenômeno quando o criminoso é um membro do clero. Podemos mesmo dizer que o escândalo é significativamente maior quando um clérigo está envolvido, porque este deveria dar o bom exemplo à sociedade e a cada pessoa. Sabemos que tanto o Papa João Paulo II, como o atual Papa, Bento XVI, condenaram veementemente estes crimes entre o clero, concluindo que não há lugar entre o clero para um pedófilo, isto é, deve imediatamente ser afastado do ministério. Em decorrência, como sabemos, o bispo ao tomar conhecimento que um presbítero seu tem incorrido em tal crime, ou ao menos há indícios sérios de que isso tenha ocorrido, deve imediatamente levar o caso ao conhecimento da Congregação para a Doutrina da Fé. Se não o fizesse, poderia ser acusado de acobertar o crime, coisa que a Igreja hoje rejeita peremptoriamente. Importante também anotar, que nunca se deve pedir nem insinuar às vítimas que não denunciem o crime, muito menos ainda oferecer dinheiro ou favores às vítimas para que não denunciem. Ao contrário, deve-se encorajá-las a que o façam, pois o crime deve ser punido. A impunidade foi sempre causa de novos crimes. Acrescente-se ainda que a pedofilia é tanto mais criminosa porque as vítimas sãos crianças que levarão para o resto da vida traumas terríveis. Por isso, a Igreja nos orienta para que apoiemos as vítimas e as defendamos e ajudemos a recupará-las no que for possível.
A homosexualidade é outro fenômeno que ocorre entre uma parcela do clero. Segundo opinião de alguns, este fenômeno estaria em crescimento, por diversas razões, seja sociais seja de falta de seleção dos candidatos ao sacerdócio. A Igreja recentemente deu novas instruções normativas para os bispos e os formadores dos seminários quanto à necessidade de uma rigorosa seleção dos candidatos ao sacerdócio. É claro que o rigor na seleção não se refere somente à moral sexual. Mas, no que diz respeito à homosexualidade, a Igreja diz que não deve ser aceito no seminário e menos ainda às Ordens sacras, quem manifestar tendências homosexuais ou pratica a homosexualidade. Se algum candidato com tal característica viesse a ser ordenado, p.ex. porque nunca os formadores ou o bispo tiveram conhecimento de tal característica, a este ordenado o seu bispo, na medida em que eventualmente tomar conhecimento da situação, deverá acompanhá-lo com grande caridade e sabedoria para que viva bem seu celibato e não incorra na prática da homosexualidade. Se, entretanto, esse ordenado começar a praticar a homosexualidade, o bispo não poderá fechar os olhos, mas deverá adverti-lo para que se corrija imediatamente e se isto não ocorrer deverá infligir as penas canônicas e por fim, se nada mudar, providenciar que ele seja afastado definitivamente do ministério. Neste contexto, é importante relembrar as normas da Igreja no que se refere à aceitação de candidatos egressos de seminários de outras dioceses ou Institutos religiosos. O não cumprimento destas normas tem levado na grandíssima maioria das vezes a aceitar candidatos inaceitáveis e acaba prejudicando gravemente à Igreja.
Outro fenômeno é o envolvimento afetivo ilícito de presbíteros com mulher, p.ex. em concubinato Também nestes casos obviamente o bispo não pode fechar os olhos, mas deve imediatamente começar a tomar as providências, segundo as normas da Igreja, toda vez que tenha conhecimento objetivo de um caso desta natureza, ou ao menos tenha indícios sérios. Muitas vezes, por falta de correção total do presbítero, será necessário afastá-lo definitivamente do ministério. Mas, sempre que tiver havido a transgressão, ainda que não se chegue a exclusão definitiva do ministério, o presbítero deverá ser sujeito à punição canônica prevista. Nos casos em que houver filho nascido de tal relação, o Papa atual indicou à Congregação para o Clero que o presbítero deve sair e assumir a paternidade, deixando, portanto, o ministério. Também nos casos que aconteceram há mais tempo, se o filho ainda for menor, o padre assuma integralmente seu filho. O bispo pode às vezes precisar ajudar o padre a entender e a aceitar benevolamente este caminho. Sabemos que a prática em outros tempos era muito variada, pois procurava-se acima de tudo salvar o ministério do padre. Hoje, a Igreja tem uma consciência maior e mais clara sobre os direitos humanos e as necessidades da criança. É a criança que tem necessidade fundamental de ter um pai e uma mãe que a assumam, amem, eduquem e convivam com ela normalmente. Mesmo se os pais forem separados ou nem podem casar, a criança tem o direito de saber quem são seus pais e de ser por eles amada e educada e de poder dizer em público e com alegria: “este é meu pai e esta é minha mãe!”. A necessidade natural e essencial da criança prevalece sobre o prosseguimento do pai no ministério ordenado. Ainda recentemente, na festa da Sagrada Família, dia 26 de dezembro passado, Bento XVI no Angelus, na Praça São Pedro, falando do mistério da Sagrada Família, acrescentou: “O nascimento de cada criança traz consigo algo deste mistério [da Sagrada Família]. Sabem-no bem os pais que recebem este dom e que, muitas vezes, assim dele falam. Todos nós já ouvimos um papai ou uma mamãe dizer: «Esta criança é um dom, é um milagre!». Com efeito, os seres humanos vivem a procriação não como mero ato reprodutivo, mas percebem sua riqueza, intuem que cada criatura humana, que nasce na terra, é «sinal» por excelência do Criador e Pai que está nos céus. Quão importante, então, que cada criança, ao vir ao mundo, seja acolhida no calor de uma família! Não importam as comodidades exteriores. Jesus nasceu numa estrebaria e como primeiro berço teve uma manjedoura, mas o amor de Maria e de José lhe fizeram sentir a ternura e a beleza de ser amado. Disso têm necessidade as crianças: do amor do pai e da mãe. É isto que lhes dá segurança e que, enquanto crescerem, lhes permite descobrir o sentido da vida”.
Tais delitos e transgressões morais, canônicos e muitas vezes também civis, como pedofilia, homosexualidade, concubinato e outros, cometidos por membros do clero, devem ser combatidos e corrigidos continuamente, com justiça e caridade, pelo bispo. Este não pode fechar os olhos, porque estaria correndo sério risco de dar escândalo. O escândalo de que fala o Evangelho não é em primeiro lugar o barulho e o clamor público contra um delito, mas é induzir alguém ao mal. Se o bispo sabe de um tal caso - e certamente outras pessoas, também do clero, sabem – então, se o bispo não tomar providências segundo as leis canônicas e civis, essas pessoas concluirão que o caso não é pecado nem crime, já que o bispo sabe e não faz nada. Um padre que estivesse em crise de vocação, poderia acabar decidindo seguir o mesmo caminho, já que o bispo fecha os olhos. Ao invés, se o bispo tomar as devidas providências, os fieis e os padres se sentirão mais convencidos e mais fortes a resistir ao mal. Será um bem, sobretudo para o clero.
 É claro que em toda história da Igreja, e não somente hoje em dia, os presbíteros tiveram que empenhar-se fortemente em viver segundo as normas evangélicas e eclesiásticas que lhes diziam respeito e sempre houve também transgressões.  Mas os tempos atuais agravaram de forma nova a situação, na medida em que estamos vivendo uma grande mudança cultural. A nova culuta adveniente e sempre mais predominante, também chamada pós-moderna e urbana, é uma cultura secularizada e secularista, laicista, relativista, subjetivista, extremamente liberal em termos de ética e moral, erotizada e filo-transgressiva (a transgressão moral é, em muitos casos, aplaudida!). Neste ambiente, tornou-se mais difícil e exigente viver o Evangelho e a identidade presbiteral, pois a sociedade deixou de ser um ambiente favorável; ao contrário, ela é a-religiosa e muitas vezes agressivamente anti-religiosa.
Por esta razão, urge reforçar a espiritualidade do presbítero. Bento XVI visou esta meta, ao proclamar o Ano Sacerdotal recém-concluído. Ao anunciar este ano especial, no Discurso à Plenária da Congregação para o Clero, dia 16 de março de 2009, ele disse: “Precisamente em vista de favorecer esta tensão dos sacerdotes para a perfeição espiritual da qual sobretudo depende a eficácia do seu ministério, decidi proclamar um especial "ano sacerdotal", [...] para fazer compreender cada vez mais a importância do papel e da missão do sacerdote na Igreja e na sociedade contemporânea”.
A já citada “Presbyterorum Ordinis” mostra que o presbítero deve ter uma espiritualidade própria. Uma espiritualidade que o leve a santificar-se, no Espírito de Cristo, através do exercício fiel dos seus três múnus, o  ministério da Palavra, o ministério de oferecer aos fiéis a santificação no Espírito Santo, pelo culto e os Sacramentos, especialmente a Eucaristia, e o ministério de governar a comunidade como seu pastor. Diz a Presbyterorum Ordinis: “Os presbíteros atingem a santidade pelo próprio exercício do seu ministério, realizado sincera e infatigavelmente no Espírito de Cristo” (n. 13). Foi importante esta orientação do Concílio, porque antes muitos sacerdotes procuravam um caminho espiritual junto às várias escolas de espiritualidade das Ordens religiosas. Agora, ficou claro que o presbítero, como tal, tem uma espiritualidade própria. Contudo, hoje observamos que há presbíteros diocesanos que aderem a algum dos assim chamados novos Movimentos e buscam nutrir-se de sua espiritualidade. Sobre isto, João Paulo II declarou na “Pastores dabo vobis”: “A participação do seminarista e do presbítero diocesano em espiritualidades particulares ou agregações eclesiais é certamente, em si mesma, um fator benéfico de crescimento e de fraternidade sacerdotal. Mas esta participação não deve obstaculizar, antes deverá ajudar o exercício do ministério e a vida espiritual que são próprios do sacerdote diocesano” (n.68). Portanto, tais espiritualidades podem enriquecer a vida espiritual do presbítero diocesano, mas nele deve prevalecer a espiritualidade própria do clero diocesano.
Segundo a Presbyterorum Ordinis, o núcleo da espiritualidade presbiteral é a caridade pastoral: “Os presbíteros alcançarão a unidade da sua vida, unindo-se a Cristo no conhecimento da vontade do Pai e no dom de si mesmos pelo rebanho que lhes foi confiado. Assim, fazendo as vezes do Bom Pastor, encontrarão no próprio exercício da caridade pastoral o vínculo da perfeição sacerdotal, que conduz à unidade de vida e ação” (n. 14). A Pastores dabo vobis retoma este ensinamento conciliar, dizendo: “A caridade pastoral constitui o princípio interior e dinâmico capaz de unificar as múltiplas e diferentes atividades do sacerdote. Graças a ela, o presbítero pode encontrar resposta à exigência permanente e essencial de unidade entre a vida interior e tantas atividades e responsabilidades do ministério, exigência sempre mais urgente num contexto sócio-cultural e eclesial fortemente assinalado pela complexidade, desagregação e dispersão” (n.23). Essa caridade pastoral foi o que Cristo exigiu de Pedro para dar-lhe o pastoreio da Igreja: “Simão, filho de João, tu me amas?” – “Sim, Senhor”, disse-lhe ele, “tu sabes que te amo”. Disse-lhe Jesus: “Apascenta minhas ovelhas” (Jo 21, 16). Amar a Jesus Cristo, o Bom Pastor, e amar suas ovelhas como Ele as amou, a ponto de dar a vida por elas, eis a caridade pastoral necessária para cada presbítero. Ela constitui o cerne da espiritualidade presbiteral.
Nutrir esta caridade pastoral impõe-se ao presbítero como um programa permanente e quotidiano de vida e missão. Ela se nutre principalmente da Eucaristia. Diz a Presbyterorum Ordinis: “Esta caridade pastoral flui sobretudo do sacrifício eucarístico, que permanece o centro e a raiz de toda a vida do presbítero, de tal maneira que aquilo que ele realiza sobre a ara do sacrifício, isso mesmo procura realizar em si o espírito sacerdotal. Isto, porém, só se pode obter à medida em que os presbíteros penetrarem cada vez mais profundamente no mistério de Cristo pela oração” (n. 14). Aliás, a celebração diária da Eucaristia é fortemente recomendada pela Igreja. E o texto agora citado apresentou também um segundo alimento espiritual: a oração. Todos sabemos, por experiência, como a oração é decisiva na vida e missão do padre. Um padre que reza pouco ou nada, não irá longe. Trata-se da oração litúrgica, comunitária, mas também da oração pessoal e privada. Aliás, quando falta esta última, também a oração litúrgica e comunitária vão perdendo para o presbítero seu sabor e sua força transformadora.
Outro alimento indispensável para a espiritualidade sacerdotal é a Palavra de Deus, especialmente através da “lectio divina”. Aliás, o acesso constante à Palavra de Deus ilumina também a Eucaristia e a oração do presbítero. Tantos outros meios de santificação podem ser ainda enumerados, como o recurso frequente à Confissão Sacramental, a Liturgia das Horas integralmente realizada cada dia, a visita ao Santíssimo Sacramento, o Rosário, a meditação, o retiro espiritual. Tudo isto fará com que o presbítero exerça fielmente, com alegria e disponibilidade, no Espírito de Cristo, seus três múnus. Além disso, neste programa de vida e missão, o amor e a solidariedade para com os pobres e com todos os sofridos, constitui-se exigência determinante para o presbítero, pois, como diz o Evangelho de Mateus, no fim dos tempos Jesus Cristo nos julgará segundo a medida de nosso amor e de nossa solidaridade concreta aos mais necessitados deste mundo. Sobre isso, poder-se-ia falar longamente.
Em síntese, para ter uma espiritualidade intensa, o presbítero precisa ser transformado pelo Espírito Santo num ardoroso e fiel discípulo de Jesus. O caminho da espiritualidade é o caminho do discipulado. Só um bom discípulo tem as condições de ser um bom pastor da comunidade dos discípulos de Cristo. O documento de Aparecida, do episcopado latino-americano e caribenho, torna-se, então, um grande subsídio para este caminho espiritual que o presbítero deve percorrer. Ali podemos também constatar como o discípulo se torna missionário.
Chegamos, assim, ao último ponto desta conferência: a missionariedade dos presbíteros. De fato, hoje manifesta-se uma nova urgência missionária. Além da Ásia e da África, também os países de antiga cristianização, sobretudo na Europa, mas também na América Latina, necessitam urgentemente de um novo esforço missionário. Os últimos Papas todos falaram sobre isto, desde Paulo VI com sua Evangelii Nuntiandi ainda no clima conciliar, e, depois, João Paulo II com a “Redemptoris Missio”, o lançamento da nova evangelização “com novo ardor missionário, novos métodos e novas expressões”, e a celebração do Grande Jubileu de Jesus Cristo, no ano 2000, com o consequente documento “Novo Millenio Ineunte”, conclamando toda a Igreja a um coragioso e confiante “Duc in Altum”. Hoje, Bento XVI assume convictamente este elã missionário suscitado pelos seus antecessores e acaba de criar um novo Dicastério na Cúria Romana, o Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, visando principalmente os países de antiga cristianização - cujos católicos vão sempre mais se afastando da Igreja - e a sociedade sempre mais laicista e  a-religiosa senão anti-religiosa. Acrescente-se o fenômeno do forte e continuado crescimento das Seitas evangélicas (neo-)pentecostais que invadiram a América Latina e agora também começam a expandir-se na África e até mesmo na Europa e outras partes do mundo. Delas Bento XVI fala explicitamente como Seitas cujo proselitismo junto aos católicos exige a nova evangelização daqueles que nós batizamos e agora se afastam da Igreja Católica, porque não temos conseguido evangelizá-los em tempo e  suficientemente. No documento Motu Proprio de criação do novo Dicastério, o Papa, citando a Christifideles Laici e referindo-se a países onde ainda existe uma forte religiosidade católica, como o Brasil, diz: “Noutras regiões ou nações, porém, conservam-se bem vivas ainda tradições de piedade e de religiosidade popular cristã; mas, esse património moral e espiritual corre hoje o risco de esbater-se sob o impacto de múltiplos processos, entre os quais sobressaem a secularização e a difusão das seitas. Só uma nova evangelização poderá garantir o crescimento de uma fé límpida e profunda”. Igualmente, Bento XVI, na sua recém-publicada mensagem para o Dia das Missões de 2011, intitulada “A urgência de evangelizar no mundo globalizado”, ao dizer que “o serviço mais precioso que a Igreja pode prestar à humanidade e a cada pessoa” é a evangelização, afirma que hoje “se alarga a multidão daqueles que, embora tendo recebido o anúncio do Evangelho, o esqueceram e abandonaram, não mais se reconhecendo pertencentes à Igreja; muitos ambientes, também em sociedades tradicionalmente cristãs, hoje são refratários a abrir-se à palavra da fé. Está em ato uma mudança cultural, alimentada também pela globalização, pelos movimentos de pensamento e pelo imperante relativismo, uma mudança que leva a uma mentalidade e a um estilo de vida que precindem da mensagem evangélica”. Conclamando então todos os católicos a empenharem-se na missão e na evangelização missionária, diz: “A atenção e a cooperação na obra evangelizadora da Igreja no mundo não podem ser limitadas a alguns momentos e ocasiões particulares, e nem podem ser consideradas como uma das tantas atividades pastorais: a dimensão missionária da Igreja é essencial, e portanto deve estar sempre presente. É importante que tanto cada batizado quanto as comunidades eclesiais devem estar interessados não em modo esporádico e saltuário à missão, mas em modo constante, como forma de vida cristã”.
Também neste novo empenho missionário e de nova evangelização poderá e deverá nos ajudar muito o documento de Aparecida. Ali também se fala dos presbíteros missionários, de sua espirtualidade e tarefa evangelizadora. A Igreja no Brasil foi particularmente conclamada a esta missão e nova evangelização por Bento XVI, quando ele esteve no Brasil, para abrir a Conferência de Aparecida, em 2007, e falou aos bispos brasileiros na Catedral de São Paulo. Ali ele disse: “Entre os problemas que afligem a vossa solicitude pastoral está, sem dúvida, a questão dos católicos que abandonam a vida eclesial. Parece claro que a causa principal, dentre outras, deste problema, possa ser atribuída à falta de uma evangelização em que Cristo e a sua Igreja estejam no centro de toda explanação. As pessoas mais vulneráveis ao proselitismo agressivo das seitas - que é motivo de justa preocupação – e incapazes de resistir às investidas do agnosticismo, do relativismo e do laicismo são geralmente os batizados não suficientemente evangelizados, facilmente influenciáveis porque possuem uma fé fragilizada e, por vezes, confusa, vacilante e ingênua, embora conservem uma religiosidade inata. [...] É necessário, portanto, encaminhar a atividade apostólica como uma verdadeira missão dentro do rebanho (grifo do conferencista) que constitui a Igreja Católica no Brasil, promovendo uma evangelização metódica e capilar em vista de uma adesão pessoal e comunitária a Cristo. Trata-se efetivamente de não poupar esforços na busca dos católicos afastados e daqueles que pouco ou nada conhecem sobre Jesus Cristo”.
No mesmo discurso Bento XVI sublinha que os destinatários primeiros  desta nova evangelização missionária devem ser os pobres das periferias urbanas e do campo, também através de visitas domiciliares. Sabemos todos quanto será importante e decisivo animar os presbíteros a assumirem esta missão. Obviamente, não será o padre sozinho quem deve realizá-la, mas com ele e preparada por ele  a inteira comunidade paroquial deve ser envolvida. Sim; a missão deve acontecer em cada paróquia. Ali, o padre deve preparar ao menos um grupo considerável de leigos/as para fazerem a missão domiciliar, da qual o pároco deveria participar e que deverá ser respaldada por todo o programa de vida da paróquia e de sua  ação litúrgica, catequética e de solidariedade para com os pobres.
A missão não é um programa eventual e temporário para o presbítero, mas o ser missionário faz parte da sua identidade e deve integrar vigorosamente sua espiritualidade, cônscio de que o agente principal da missão é o Espírito Santo. Cada presbítero deve sentir dirigido a si, em primeira pessoa, o envio do Senhor Ressuscitado: “Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura. Fazei que todos os povos se tornem meus discípulos” (cfr. Mc 16,15 e Mt 28,19).
Obrigado a todos pela atenção!

OS DEMÔNIOS DO APOSTOLADO


Segundo Galilea

"Sejam advertidos, pois, os que são muito ativos, que pensam abarcar o mundo com suas pregações e obras exteriores, que fariam muito mais bem á Igreja e agradariam muito mais a Deus, sem falar no bom exemplo que dariam, se gastassem ao menos a metade deste tempo em estar com Deus em oração... Com isso, fariam mais e com menos trabalho com uma só obra do que com mil, alcançando merecimento de sua oração e recobrando forças espirituais com ela; do contrário, tudo não passa de agitação, de fazer pouco mais que nada e, às vezes, nada e, outras vezes, dano" (São João da Cruz)

 

Preâmbulo


Uma boa prática profissional, para que seja eficaz, humanizadora e aceitável aos seus beneficiados, requer competência científica e certos valores da parte do profissional.
Um médico deve ser competente: sem competência, ele não pode prestar um serviço à saúde e sua profissão se torna ineficiente; para ter êxito, requer também certas qualidades e atitudes de espírito: inspirar confiança, estar disponível ao enfermo, ter tino, ser confidente... Este conjunto de valores conformam o que se chamaria em linguagem cristã “a espiritualidade" de um médico.
O apostolado, a "profissão apostólica", exige condições análogas: competência e uso de métodos pertinentes, certos conteúdos e temas que é preciso conhecer, uma mensagem adequada a transmitir... Exige, igualmente, certas atitudes, convicções e valores espirituais da parte do apóstolo. É o que propriamente constitui a "espiritualidade” de um médico.
Entretanto, o apostolado, por sua própria natureza, é diferente de qualquer outra profissão ou atividade: sua espiritualidade é essencial para sua eficácia: a atitude do apóstolo é condição necessária para o fruto de seu apostolado.
Pois, um médico competente, ainda que seja medíocre de espírito e eticamente falando, pode ter êxito e curar pacientes. Mas um apóstolo carente de espírito, normalmente não alcançará êxito decisivo e profundo, a não ser aparente. Dizemos "normalmente", porque pode suceder que Deus, em sua bondade, faça grandes coisas através de um servidor medíocre. Na realidade, aqui o espírito é mais necessário do que a habilidade.
Por que as coisas são assim? Basicamente porque o apostolado é uma profissão de Deus feito homem, e não é uma profissão humana. Seu objeto é transmitir o caminho, a verdade e a vida de Deus e não a do ser humano. Por isso, Jesus Cristo é o único apóstolo, e os seres humanos são apóstolos na medida em que Jesus os chama para tal e lhes comunica seu poder.
Daí que o espírito e os valores do apóstolo, vêm total e unicamente de sua relação com Jesus Cristo: ele é um eleito dele, seu enviado e seu instrumento, ao mesmo tempo livre e dependente do poder apostólico de Deus. Daí nascem todas as atitudes, os valores e as convicções que configuram a espiritualidade do apostolado.
Estes valores, os encontramos em Jesus, que é sua fonte e modelo, e nos santos por imitação de Cristo. Naqueles que ainda não são santos, estes valores também estão presentes, mas mesclados com incoerências múltiplas e com tentações mais ou menos consentidas. Por isso, um bom modo de conhecer o espírito do apostolado é conhecer as incoerências e tentações a que está submetido. O espírito bom ressalta por contraste com o espírito mau, e se conhece melhor uma virtude, ao conhecer os "demônios” que a tentam.
Vejamos alguns dos "demônios" mais corriqueiros do apostolado. Para identificá-los, sirvamo-nos da experiência, vista a partir do ideal cristão do apostolado. Através das tentações, este ideal revelar-se-á a nós por contraste, como a sombra revela a luz.


1.O Messianismo

O demônio do messianismo induz o apóstolo a constituir-se no centro de toda atividade pastoral em que está engajado. É uma tentação que vai penetrando sutilmente sua vida, até levá-lo a sentir-se indispensável em tudo.
O messianismo constitui basicamente uma atitude deficiente em relação a Deus: eu sou o “piloto” e o Senhor é o "co-piloto" ajudante. Quem cai nesta tentação, não é que deixe de levar Deus em conta, de rezar e de recorrer a ele diante dos problemas, mas o faz para que Deus simplesmente lhe ajude no apostolado que ele próprio dirige e planeja. Em última análise, se busca incorporar o Senhor em nosso trabalho e não de incorporarmo-nos no trabalho de Deus, que é o específico do apostolado: Deus é o "piloto", e eu sou o "co-piloto" ajudante. Trata-se, inconscientemente, de substituir o messianismo de Cristo, o único evangelizador, pelo nosso messianismo pessoal.
Esta atitude diante de Deus, se projeta numa atitude deficiente também para com os demais que colaboram conosco. Tornamo-nos incapazes de delegar responsabilidades ou tarefas: não confiamos verdadeiramente nas pessoas, com exceção de uns poucos, habitualmente réplica fiel de nós mesmos, acabando rodeados unicamente por eles. É uma tendência que costuma agravar-se no transcurso dos anos.
Existe sempre uma relação entre a atitude diante de Deus e a atitude frente aos outros e vice-versa. Assim, a desconfiança nos colaboradores do apostolado, reflete uma desconfiança em Deus, que é justamente o que vai implícito no demônio do messianismo. Pois, confiar realmente em Deus, supõe uma confiança prudencial nos outros. E, por sua vez, a confiança nos outros também implica Deus, pois foi ele quem os foi chamando e colocando-os como companheiros nossos de trabalho.
O messianismo tem também conseqüências negativas nos resultados externos do apostolado, ao menos a longo prazo, além de comprometer o fruto profundo da evangelização. Em primeiro lugar, a atitude messiânica não deixa os outros crescerem, uma vez que a expansão e maturação da obra apostólica não caminham paralelamente, como devia ser, com a maturidade e crescimento daqueles que a levam a cabo. Em segundo lugar, sucede, então,  que as iniciativas e criações do apostolado messiânico, não contribuem necessariamente para formar pessoas, nem para preparar sucessores. Normalmente, o apóstolo messiânico se identifica a tal ponto com sua obra que, quando ele desaparece ou se translada, ela se acaba: era demasiadamente pessoal e não havia substitutos preparados.
O verdadeiro apostolado que constrói o Reino de Deus a partir da Igreja ali onde ela ainda não está, contribui sempre para fazer desabrochar a própria Igreja: seus evangelizadores e comunidades. Também se aprende a ser cristão aprendendo a evangelizar, e isso não é possível sem realmente assumir responsabilidades. Um apóstolo maduro revela, entre outras coisas, que alguém confiou nele.


 2.O Ativismo

O demônio do ativismo não significa ser muito ativo ou muito trabalhador, ou ter muitas ocupações e apostolados diversos. Ser ativo, apostólico, não é ser "ativista" como tentação.
O ativismo se produz na medida em que aumenta a distância e a incoerência entre o que um apóstolo faz e diz, entre o que ele é e o que ele vive como cristão. É verdade que na condição humana aceitamos como normal a inadequação entre o “ser” e o "agir" mas, no caso do ativismo, ela é acentuada e tende a crescer, não a diminuir, como seria o ideal do processo cristão.
O ativismo tem muitas expressões. Uma delas é a falta de renovação na vida pessoal do apóstolo. Neste caso, normalmente a oração é insuficiente e deficiente. Não há momentos prolongados de silêncio e retiro. Não se cultiva o estudo, apenas se lê. Nem sequer se deixa tempo para descansar o suficiente e repor-se. Paralelamente, há sobrecarga de trabalho, de atividades múltiplas, e a agenda de compromissos costuma estar cheia. O ativista dá a impressão de que é necessário, como estilo de vida, um grande volume de trabalho externo. Daí a criação de um círculo vicioso, cuja origem - excessiva atividade ou negligência em renovar-se - não é fácil identificar: por um lado está o aumento de atividades que faz cada vez mais difícil tomar as medidas de renovação interior, e que são as que conduzem ao crescimento no “ser”; por outro lado a incapacidade (que tende a crescer) de renovar-se tende a compensar-se e disfarçar-se com a entrega a um ativismo desenfreado. Em última análise, o ativismo é a desculpa do "escapismo".
O ativismo também se exprime numa das distorções mais radicais do apostolado: colocar toda a alma nos meios de ação e de apostolado, no que se organiza e se faz, esquecendo-se de Deus, quem é, afinal de contas, por quem se faz, se organiza e se trabalha. Com isso, o apóstolo se transforma num profissional que multiplica iniciativas, habitualmente boas, não parando para discernir, para perguntar a Deus se são necessárias ou oportunas ou se é preciso fazê-las agora e desta maneira. Assim, os meios do apostolado acabam obscurecendo seu sentido e seu fim.
Outra expressão do demônio do ativismo é não trabalhar ao ritmo de Deus, substituindo-o pelo próprio ritmo. Isso ocorre quando se vai mais rápido ou mais lento do que Deus. Normalmente, o ativista, pelo menos num primeiro momento, costuma pecar por aceleração. É o resultado da desproporção, sempre existente, entre a visão e os projetos do apóstolo e a realidade das pessoas envolvidas. O normal é que um agente de pastoral tenha mais visão que sua comunidade e que seu povo, e saiba antes e melhor que eles onde e como chegar. Além disso, as pessoas não respondem ao ritmo que a gente quer, pois o ritmo do crescimento corresponde ao ritmo de Deus e não das previsões da gente. O ritmo de Deus é constante, mas de um processo lento. Os seres humanos, como as plantas e o resto da criação, não mudam e nem crescem à força, artificialmente, queimando etapas. É preciso esperar e ter paciência sem, com isso, deixar de educar, cultivar e exigir: é preciso ser como Deus, adequando-nos ao seu ritmo e forma de agir e transmitir a vida.
Pedagogicamente, esta forma de ativismo pode ser desastrosa. Ao acelerar o ritmo das pessoas e dos processos, não somente se dificulta o crescimento destas pessoas, como se pode também destruir e "queimar" muitas delas; outras se afastarão e será muito difícil recuperá­-las. Em todo caso, dado o aparente fracasso de seu projeto, o ativista, uma vez tendo experimentado o demônio da impaciência apostólica, facilmente cai na tentação do desânimo. "Aqui, com essa gente, não se pode fazer nada". Pois, a impaciência e o desânimo são gêmeos. Ambos são filhos do orgulho, da auto-suficiência, do esquecer que "tanto o que planta como o que rega não são nada, e sim Deus que faz crescer" (1 Cor 3,7).


  3. Fazer da confiança em Deus uma farsa

A principal característica deste demônio do apostolado é, obviamente, esquecer que a desconfiança na gente mesmo, acompanhada por uma total confiança em Deus, é a essência da espiritualidade do apóstolo. A tentação é pôr a confiança em Deus num segundo plano, como um recurso em caso de necessidade e de emergência, esquecendo de fazê-lo presente nos apostolados ordinários e cotidianos. Ao não colocar a confiança em Deus, com toda a convicção da alma, se está pondo a confiança na gente mesmo, ainda que se diga o contrário. Quando se trata dos resultados profundos e teológicos da evangelização (o Reino da graça) e não de resultados psicológicos ou de pura influência humana, é preciso confiança absoluta no Senhor e desconfiança absoluta na gente mesmo. No apostolado, as duas confianças não podem fazer-se presentes simultaneamente: ou se confia realmente em Deus e se desconfia da gente, ou se confia na gente e se desconfia de Deus.
Desconfiança ou confiança na gente é aqui uma qualidade teológica e não psicológica. Isto é, não se trata de ser inseguro, com complexo de inferioridade, não reconhecer dons e condições humanas e de vida cristã que Deus nos deu, certamente em abundância. A confiança humana e psicológica é necessária ao apóstolo. A desconfiança de que estamos falando está num outro nível, no âmbito dos frutos do Espírito. E paradoxalmente, uma autêntica confiança no Deus do apostolado comunica ao apóstolo a confiança psicológica que lhe pode faltar diante da evidência de suas limitações humanas.
O evangelizador que colocou sua confiança nele mesmo e não no Senhor, como atitude habitual e profunda (tão profunda que muitas vezes nem percebe mais que Deus está presente, tornando-se cego em sua auto-suficiência), reforça esta tentação com certos tipos de êxito proporcionados pelas suas qualidades humanas e sua influência. Ora, as atividades apostólicas seguem as leis da eficácia humana, que é sempre exitosa num primeiro momento, mas que nem sempre está ligada à graça e à obra permanente de Deus. Todos conhecemos evangelizadores inteligentes, preparados e com muitas qualidades, que exerciam grande atração e influência. Talvez por esta razão, colocavam sua confiança apostólica em si mesmos, mais do que em Deus. Evangelizadores estes, que durante alguns anos brilharam no apostolado. Eram convidados para pregar retiros e dar conferências, suscitaram vocações sacerdotais e tiveram muitos seguidores. Num determinado momento, surgiram algumas contradições e fracassos e, quase da noite para o dia, se apagaram. E mais, muitos de seus jovens seguidores, com o tempo, se distanciaram da Igreja. Os grupos e comunidades que tinham formado não perseveraram e as vocações que haviam suscitado foram se retirando do seminário... O que aconteceu? Deus deu-lhes a entender "Eu não estou contigo". Deus deixou este apóstolo sozinho, revertendo sua promessa de "estarei convosco até o final dos tempos" (Mt 28,20). Apenas concedeu-lhe os resultados de sua auto-suficiência.
O colocar a confiança primeiramente em Deus e não na gente mesmo, tem uma caricatura: recorrer à confiança de Deus nas ocasiões em que a gente não fez o que devia fazer na atividade apostólica, ou em momentos que a gente se comportou de maneira irresponsável ou não se preparou como devia. Estas confianças oportunistas são uma manipulação da verdadeira confiança em Deus. Ora, a confiança, para que seja autêntica, supõe que o apóstolo tenha se preparado e trabalhado como se tudo dependesse dele e que, uma vez feito tudo o que estava ao seu alcance, às vezes até ao heroísmo, não põe sua confiança em seu trabalho e em sua preparação, mas no poder de Deus.


4. Não confiar na força da verdade

Este demônio é uma variante da pouca confiança em Deus, ainda que seja uma tentação com características próprias.
A verdade cristã, exposta por Cristo e transmitida pelo magistério da Igreja, apresenta desafios doutrinais e morais que hoje vão na contracorrente das ideologias e dos critérios éticos das culturas dominantes e secularizadas. Verdades como a vida depois da morte, a confiança na providência amorosa de Deus, o valor positivo do sofrimento, da cruz ou da austeridade, a necessidade, às vezes, de crer ou de aceitar sem entender, assim como o valor da castidade ou da virgindade, da preservação do matrimônio ou da defesa da vida, ainda que em casos extremos, não são hoje afirmações "populares". Inclusive para os que crêem nelas, não deixam de ser uma pedra de tropeço quando lhes afetam pessoalmente.
Ora, diante disso, todo apóstolo está exposto à tentação de vacilar, de não oferecer a verdade de Cristo tal como ela é (ainda com as necessárias considerações pedagógicas de tempo, oportunidade, etc.), supondo que ela não vai ser seguida ou aceita, ou que é inconveniente fazê-lo. É desta maneira que nas diversas formas do apostolado da palavra se passa por cima de certas verdades ou se cai na ambigüidade, confiando mais na prudência humana, que não se confunde com a conveniente pedagogia, do que na força e no poder de persuasão da própria verdade. Cai-se igualmente nesta tentação na formação de pessoas, na hora de oferecer um conselho, uma orientação, uma esperança... Em lugar das exigências e da luz do Evangelho, se oferece às pessoas mera experiência humana, conselhos "razoáveis", privando-as da oportunidade de conhecerem progressivamente a verdade que nos faz livres.
Confiar na força do apostolado supõe para o apóstolo ter a convicção de que a verdade da fé e da moral coincide com a humanização do ser humano e seus grandes ideais. É preciso crer que na verdade está o autêntico bem das pessoas e, portanto, sua única felicidade verdadeira.


5. Pregar problemas e não certezas

Este demônio leva a confundir os distintos níveis e momentos do apostolado da palavra. Há momentos e públicos em que o que se espera é uma conversa ou uma palestra sobre alguma questão em discussão, conjecturas, opiniões e problemas de Igreja. Mas, em se tratando da catequese, da homilia, da pregação missionária, é necessário sempre transmitir a mensagem cristã, que é a mensagem de Cristo, em toda a sua integridade. Neste âmbito, as pessoas esperam receber as certezas da fé para renovar a própria vida. Elas não esperam e nem querem que seus qüestionamentos e perguntas lhes sejam devolvidos sem resposta. Muito menos querem que se repitam relatos de conflitos e de problemas, sem estarem iluminados com as certezas da fé. A essência da evangelização é anunciar uma mensagem e não problemas. Estes podem ser anunciados, mas só como ponto de partida. Trata-se de anunciar certezas e não conjecturas ou opiniões pessoais.
As causas desta tentação podem ser várias: uma poderia ser a falta de critério, de experiência ou de discernimento por parte do apóstolo; outra, a tendência em projetar seu estado interior. Ora, quando se vacila em relação a convicções, quando a vida cristã é mais um conjunto de problemas e de perguntas do que de certezas, a tendência é transmitir isso aos outros. O ditado antigo que diz: "a boca fala do que o coração esta cheio", se aplica ao apostolado ao pé da letra.
A comunidade cristã se edifica basicamente sobre a fé, a esperança e a caridade de seus membros. Ela não se edifica sobre as dúvidas, as confusões e as problematizações compartilhadas.


 6.Reduzir a esperança

Este demônio seculariza o anúncio da esperança cristã. Ora, esta se funda nas promessas de Cristo: a ressurreição depois da morte, a vida eterna, a certeza de seu amor e de sua graça nesta vida que tornam possível o ser humano ser santo em qualquer circunstância, viver com dignidade e ser capaz de superar o mal moral e a tentação em todas as suas formas. Esta é a esperança que essencialmente alimenta o apostolado.
Neste caso, a tentação consiste em transmitir uma mensagem de esperanças humanas em detrimento da esperança cristã fundamental. O apóstolo prega e promove a confiança em relação a um futuro social e político melhor, a superação de uma enfermidade, de um problema humano ou da pobreza, ou promete ainda o êxito das libertações que a humanidade busca nos dias de hoje... Entretanto, ainda que estas esperanças humanas sejam legítimas e se deva lutar por elas, não estão garantidas por Cristo para esta terra. Não sabemos com certeza se elas se realizarão. Anunciá-las como esperança cristã seria enganar as pessoas e reduzir o Evangelho a uma mensagem de libertações humanas legítimas ou de otimismo no porvir, o que não é alheio ao apostolado, mas que não tem a certeza da esperança cristã.
Reduzir a esperança é esvaziar o anúncio da vocação do ser humano à vida eterna, à santidade, à fé e á caridade como o motor e o valor supremo das libertações humanas. É converter o apostolado em inspiração de expectativas humanas e de empenho para um mundo melhor, coisas boas e que desafiam o cristianismo, mas que não deveriam reduzir sua essência, que é a proclamação de Cristo como a verdadeira esperança do ser humano.


 7.Perder o sentido das pessoas

Este demônio converte o apóstolo num executivo da pastoral. Alguns cargos e trabalhos se prestam mais a isso, mas em todo caso, o resultado, progressiva e às vezes imperceptivelmente, se dá de maneira semelhante. Isso ocorre quando o apóstolo se vai deixando absorver de tal modo pelo administrativo, o organizativo, o planejamento e a supervisão, que já não tem tempo, e sobretudo espaço psicológico, para dedicar-se às pessoas pelas quais trabalha, para dedicar-lhes o tempo necessário e para estar próximo delas.
O demônio da despersonalização do apostolado faz com que o apóstolo esteja tão dedicado aos meios de ação e de serviço, que esqueçe das pessoas a quem serve e em função das quais estão organizações e programas que tanto o absorvem.
Esta tentação pode tomar outras formas. Por exemplo, o apóstolo que se converte em executivo pastoral, poderá ter a tendência a dar um valor excessivo aos planos, aos programas e às linhas de ação, esquecendo-se da realidade das pessoas que devem levar a cabo tudo isso. Acaba impondo esquemas às pessoas em lugar de adaptar os esquemas e programas à realidade delas. E assim, realidade o apóstolo executivo vão se tornando cada vez mais distante.
O ponto de partida de todo apostolado são as pessoas, com suas possibilidades e seus limites, e não os esquemas, por melhores e mais ideais que sejam.

8. Fazer acepção de pessoas

Deste demônio praticamente ninguém escapa. Não é fácil tomar consciência desta tentação. Ele ataca até o apóstolo mais espiritual, não porque não saiba disso, mas por cegueira. Por isso a expulsão deste demônio implica um longo caminho de iluminação das motivações apostólicas, que como toda iluminação de motivos normalmente se faz durante a vida toda.
Habitualmente nesta tentação do apostolado (salvo que tenha caído em níveis muito baixos), as acepções e discriminações de pessoas não são motivadas por preconceitos graves: racismo, classicismo, nacionalismo, tratamento diferenciado de ricos e pobres, etc. Estes graus de discriminação normalmente não estão presentes na pastoral da Igreja, a não ser em casos extremos. O demônio da acepção de pessoas costuma apresentar-se de maneira mais sutil.
Trata-se aqui de dar mais tempo, interessar-se mais e estar mais disponível às pessoas em geral e para os membros da comunidade cristã que têm mais qualidades humanas, que são mais inteligentes, mais interessantes ou agradáveis, mais simpáticos e atraentes... Conseqüentemente, se deixa de modo sutil num segundo plano, os que são menos dotados, mais opacos e menos atraentes, menos inteligentes e gratificantes... Esta é a forma mais comum de acepção de pessoas no apostolado, tanto mais sutil, profunda e persistente, quanto mais inconsciente ela for.
Além disso, no apostolado, no caso da predileção pelos pobres, ela não pode restringir-se ao nível sociológico, que é sempre essencial, é verdade. Ela precisa chegar igualmente a todos os “pobres" em qualidades humanas externas, psicologicamente discriminados em atenção e acolhida. Ora, o apostolado não pode guiar-se unicamente pelo critério da eficácia, que aconselha investir preferencialmente nos mais dotados e nos líderes potenciais. Deve, igualmente, testemunhar o primado da caridade fraterna, que se revela preferencialmente com os desprezados e esquecidos.



 9. 0 sectarismo

O demônio do sectarismo leva o apóstolo a isolar-se em seu campo de trabalho, em suas idéias, em seu grupo... Pouco a pouco, ele vai perdendo seu sentido de pertença e de integração numa Igreja mais ampla, mais rica, numa Igreja universal, na qual todo cristão é solidário em seus êxitos e cruzes, em seus problemas e conquistas, seja em seu país ou no mundo todo. O apóstolo sectário se fecha em sua visão das coisas, nos limites de sua experiência e, través disso, vê e julga a Igreja. Com isso, sua visão deixou de ser verdadeiramente católica.
O sectarismo tem sintomas pessoais e grupais. No nível pessoal, um dos mais típicos, é o isolar-se. O apóstolo trabalha sozinho, sem integrar-se numa missão de conjunto. Não participa das reuniões programadas para esta finalidade, nem de encontros de atualização e de capacitação. Não lhe interessa incorporar-se a critérios e planos comuns, a instâncias de avaliação ou revisão, nem procura relacionar-se com outros evangelizadores.
Conseqüentemente, o sectário isola seu trabalho do resto. Faz "sua coisa" e tem “sua gente", sua própria experiência e sua visão do apostolado. Tudo o que é diferente de sua visão e experiência é questionável: só vê "poréns" e defeitos. A própria autoridade pastoral da Igreja é ignorada ou criticada quando não concorda com sua visão e idéias próprias .
Outro sintoma desta tentação é reduzir o apostolado a um só tema ou pouco mais, a uma determinada linha de pastoral, como grupos de oração, direitos humanos, liturgia, jovens... O resto não interessa.
Isto não quer dizer que não deva haver evangelizadores especializados. É que o bom especialista precisa ter uma visão mais ampla e de conjunto.
O resultado é que o apóstolo se torna sectário também em relação às pessoas ás quais se dirige. Se ele for monotemático, sua freguesia habitual também o será: falará sempre ao mesmo público, que partilha sua visão e seus interesses limitados. Ora, isso leva ao perigo de suscitar comunidades tão sectárias quanto ele.
O demônio do sectarismo pode ser, portanto, também grupal. Não se trata, porém, do que é normal no apostolado e na Igreja, isto é,  o fato de pessoas mais afins em espiritualidade, em pastoral ou simplesmente por pertencerem a uma mesma geração, formarem grupos de trabalho, de vida cristã ou de amizade. Isto não é sectarismo, ainda que todo grupo afim precise saber que poderia estar exposto a esta tentação. O sectarismo grupal consiste em fechar-se nas idéias do grupo ou do movimento teológico, pastoral, espiritual... Os participantes do grupo acabam pensando que têm a melhor versão da verdade ou toda a verdade, que sua orientação é privilegiada, que não têm muito que receber de outros grupos ou movimentos de Igreja.
Este tipo de sectarismo nos faz marcadamente proselitistas, ignorando o legítimo pluralismo. Não há integração com outros movimentos em tarefas comuns: se costuma ter a própria agenda. Esta tentação pode conduzir, sutilmente, a fazer da própria espiritualidade, da própria pastoral ou de sua teologia, em principio legítimas, uma ideologia, um integrismo conservador, progressista ou de qualquer outra cor.

10. Fechar-se em sua própria experiência

Este demônio não é sectário, nem tem muita gravidade. E uma tentação mais benigna e sutil Basicamente, consiste em elevar as experiências apostólicas pessoais à categoria de princípio universal. Se tal ou tal experiência foi boa, todos os que trabalham neste tipo de apostolado deveriam fazê-la. Se a experiência foi má, ninguém deveria fazê-la. E caso se esteja numa posição de autoridade, se procurará simplesmente suprimi-la.
A tentação está em esquecer que toda experiência é relativa: tem circunstâncias próprias, agentes e evangelizadores próprios, tempo e lugar próprios e irrepetíveis. Assim, o que não deu resultado positivo num certo momento, com determinadas pessoas e num certo conjunto de circunstâncias, não significa que não possa dar resultados com protagonistas e circunstâncias diferentes.
Com o passar dos anos, evidentemente, esta tentação se agrava, dado que o apóstolo já acumulou um número significativo de experiências falidas e frustrantes. A tendência, então, é instalar-se e promover só o que deu resultado a ele próprio, desconfiando de outras experiências e iniciativas.
A verdadeira sabedoria, em contra-partida, consiste em não deixar-se condicionar pelos fracassos, nem pelo acervo positivo das experiências passadas, mas em estar disposto a tentar outras formas de apostolado e a abrir-se à experiências de outros.

11.Esperar do apostolado uma carreira gratificante

Este demônio do apostolado é muito ativo. O apostolado da Igreja é bastante organizado e hierarquizado, como é normal que aconteça em toda instituição humana que tem uma missão a cumprir. Assim, na Igreja, há cargos e tarefas de maior autoridade ou de maior poder ou prestígio que outras. Também existem títulos e honras externas: a Igreja mantém isso com sábio realismo e consideração com a condição humana. A tentação está em ir identificando o apostolado com uma carreira eclesiástica e sua importância e eficácia profunda com o cargo que se ocupa.
O demônio das gratificações terrenas pode tentar de muitas maneiras. A maneira mais rude é quando se une ao apostolado a ganância pelo dinheiro, fazendo dele, não tanto no nível das convicções como na prática, uma profissão lucrativa, seguramente mais generosa e idealista que outras. Algo muito deferente é ganhar a vida com o trabalho apostólico, sem ânsias de lucro, sobretudo quando se está dedicado a ele em tempo integral. Quando esta tentação se agrava, se chega a fazer do apostolado a aparência de um negócio que, embora não seja "negócio” estritamente falando, é suficiente para tirar-lhe a credibilidade. Esta tendência pode levar o apóstolo a interessar-se exclusivamente pelas tarefas apostólicas remuneradas, perdendo, com isso, o sentido da gratuidade no serviço e na evangelização.
Uma outra tentação mais sutil deste demônio, é esperar reconhecimento e até elogios das pessoas e da hierarquia da Igreja. Quem cai nesta tentação, passa a necessitar deste tipo de gratificação para manter seu entusiasmo e seu élan. Pareceria que no apostolado não se devesse buscar agradar a Deus, mas recompensas humanas. Quando não há elogios e reconhecimentos explícitos, se interpreta isso como uma ingratidão e uma falta de valorização, provocando uma baixa na própria motivação e entrega. De modo semelhante, quando há críticas por parte das pessoas com quem trabalha ou da hierarquia da Igreja, o apóstolo se sente rechaçado e perseguido. Mais uma gota d'água, e o apóstolo deixará o seu trabalho.
Entretanto, talvez o demônio mais sutil se dá na aspiração de postos e cargos; na necessidade de que toda mudança de apostolado signifique igualmente uma promoção. Há uma expectativa latente por "ascender". O apóstolo marcado por esta tentação, se não ascende em tempo, fica ressentido e, às vezes, se "desestrutura". Trata-se de um demônio sutil, que costuma fantasiar-se de "anjo da luz" (2 Cor 11,14): dissimula a ambição de promoções e postos com a desculpa do apostolado mais eficaz, de serviço à Igreja, etc... Na prática, se faz da "carreira" um fator de apostolado, e da ascensão um referencial constante, em geral não totalmente consciente. O resultado desta tentação é a imperfeição das motivações: lhe interessa não só servir à Igreja gratuitamente e seguir a Cristo pobre, mas ficar bem com todos e "ganhar pontos". Esta tentação produz também uma falta de liberdade no apostolado e uma preocupação pela própria imagem. Evita-se toda discordância ou oposição legitima com a autoridade, que em certos momentos pode ser um dever no apostolado, não tanto por lealdade, mas pelo interesse de mostrar-se agradável e dialogante.


  12. Perder o gosto pelo apostolado

Este demônio transforma a evangelização em rotina e num dever, quando deveria ser a principal fonte de alegria para a apóstolo. A alegria e a plenitude interior de colaborar com a vinda do Reino de Deus e de trabalhar na vinha do Senhor devem ser para o apóstolo uma experiência constante.
Esta tentação está ilustrada precisamente na parábola dos operários contratados para a vinha, em que alguns chegam cedo e outros mais tarde (Mt 20,lss). Os que haviam trabalhado o dia inteiro, se queixam de que seu salário é igual ao daqueles que haviam trabalhado só uma hora. Ora, o que eles não tinham compreendido, é que o salário não era importante, nem era a verdadeira gratificação pelo seu trabalho. Seu prêmio e gratificação era o próprio fato de terem dedicado o dia inteiro à vinha do Senhor, com a satisfação e a alegria que isso lhes poderia ter ocasionado.
O apóstolo que sucumbe a esta tentação, fará de seu apostolado um trabalho a mais, como outros, limitado pelo peso do dever e da rotina. Como os operários que trabalharam o dia todo, trabalhará bem e com dedicação, mas perderá de vista o sentido último do que ele faz: um trabalho para a eternidade, pelo qual Deus age nele, para libertar a condição humana e semear vida de fé, de esperança e de amor a Deus e aos outros, que é o Reino de Deus que se antecipa.
É no apostolado que o apóstolo encontra sua alegria e o sentido de sua vida. É parte de sua alegria comprovar o bem que Deus faz através dele, e dar graças a Deus, sem vanglória, porque Cristo o elegeu como seu instrumento livre e responsável, para "dar fruto que permaneça" (Jo 15,16). O que não dispensa o apóstolo de, sem perder a paz e sua entrega alegre, também pedir perdão com humildade, pois devido às suas falhas pessoais e falta de santidade, Deus não pôde fazer através dele todo o bem que ele queria. Pedir perdão porque, por ele não ter sido melhor, muitos não se tornaram melhores, nem se converteram e nem recuperaram a esperança.
O gosto e a gratuidade por trabalhar na vinha do Senhor não deve fazer-nos complacentes. Há muito o que mudar e do que nos arrepender no apostolado. Por nossa falta de santidade, seus frutos, reais pela graça de Deus, são, às vezes, medíocres.

13.A instalação

O demônio da instalação, às vezes com boas desculpas, corrói no apóstolo o espírito de superação em todos os aspectos. É uma tentação que costuma chegar, ainda que nem sempre, com o passar dos anos e a chegada da maturidade. Ela se expressa no fato do apóstolo ter encontrado seu cantinho, seu ritmo e seu modo de trabalhar, e de se ter arraigado em seus critérios e idéias. Ele é consciente de que o apostolado da Igreja avançou, que ele apresenta novos desafios e exigências, mas não tem disposição para mudar e renovar-se. Aos mais jovens que trabalham junto dele, os deixa fazer, mas não se deixa questionar. Pode até participar de reuniões e cursos de renovação, mas estes não têm influência sobre ele. Tudo o que ele espera é o que o deixem em paz, instalado em sua pastoral que, além do mais, costuma realizar de forma irrepreensível. Apesar disso, é possível até que ocupe altos cargos na Igreja.
Esta tentação, que vai tomando conta lentamente e se faz inevitável quando o apóstolo perde a espiritualidade do trabalho, costuma ir combinada com a instalação em seus próprios defeitos. Provavelmente nem se trate de algo realmente grave, mas o dinamismo espiritual está estancado. Sob uma aparência exterior honesta, há uma mediocridade interior. Desanimado, já não tem suficiente esperança e nem confiança em Deus para melhorar e, tacitamente, já fez um pacto com seus defeitos e mediocridade que ele pensa, falsamente, que não pode ou não vale a pena superar. "Eu sou assim mesmo...”.
Este demônio induz a pensar, sobretudo depois de certa idade, que se tem o direito de buscar compensações e de aburguesar-se. E, então, o apóstolo termina contentando-se com as exigências mínimas.



 14.Carecer de fortaleza ou vigor

Este demônio debilita o apóstolo em algo que é fundamental para exercer um apostolado de envergadura, abnegado e constante, apesar de toda sorte de contradições: a fortaleza.
Este debilitamento e carência adquire formas contrárias às que caracterizam a fortaleza apostólica. Afeta, em primeiro lugar, o vigor físico, que não pode ser o mais relativo no apostolado. Não se pode, por exemplo, menosprezar a saúde das pessoas. Afeta, também, os hábitos alimentares: a gente pode tornar-se exigente em qualidade e quantidade; no horário; apega-se a certos hábitos; chegando à incapacidade de dar um sentido evangélico ao comer pouco ou nada, caso o serviço pastoral o requeira. O mesmo ocorre com o sono e o descanso, que muitas vezes o serviço pede sacrificar. Converte-se numa dificuldade habitual viajar em meios populares, a pé, em transporte coletivo. Se busca sistematicamente o meio mais rápido e cômodo, com a desculpa da eficácia apostólica, sem discernimento, uma vez que, em muitos casos, a escusa pode ser válida. Também o cuidado excessivo da saúde e a adoção de todas as formas de prevenção às quais recorrem os mais privilegiados, pode tornar mais aguda esta fase de austeridade e fortaleza. Poderia-se agregar outros exemplos.
A tentação afeta igualmente a fortaleza psicológica, tanto mais necessária que a física para o verdadeiro apostolado. Neste campo, é preciso educar-se num alto grau de resistência psicológica, o que não exclui ser emocionalmente vulnerável como todo ser humano normal. A fortaleza consiste em assimilar os golpes psicológicos, sem desanimar e, muito menos, desestruturar-se. Esta deve ser a atitude diante das críticas injustas ou parciais, diante das calúnias, das acusações... E, logicamente, diante das perseguições e das diversas formas de sofrimento, que podem chegar ao martírio, por causa do Reino. A aspiração de muitos apóstolos à última bem-aventurança - "bem-aventurados os perseguidos por minha causa e a justiça do Reino" -, não se improvisa, e é vã se não for preparada e se não estiver acompanhada pela aceitação das provações e crises psicológicas, com fortaleza evangélica.
A tentação pode ser mais grave se a provação da fortaleza provém do interior da Igreja. Um dos piores sofrimentos do apóstolo é o da “contradição dos bons", de sua comunidade, de seus irmãos e companheiros de trabalho, de autoridades da Igreja. Em certos momentos do apostolado, em muitas ocasiões em que se trata de experimentar ou inovar dentro daquilo que é legítimo, o apóstolo precisa aceitar, com coração sadio e atitude evangélica, ser minoria ou simplesmente estar sozinho. Por isso, necessitará fortaleza diante das tensões e conflitos existentes no interior da Igreja, diante das incompreensões, das suspeitas, da falta de confiança e de colaboração.
A fortaleza apostólica purifica, amadurece e prepara para o futuro. O demônio da inércia e da fragilidade mantém o apóstolo na adolescência, numa certa mediocridade rotineira, dificultando-lhe exercer o melhor serviço da Igreja, agora e no futuro.

15.A inveja pastoral

O demônio da inveja não é alheio ao apostolado. Trata-se de um demônio universal. Obviamente, sua ação entre os apóstolos não tem os resultados devastadores que tem na política, na arte ou em outras atividades do "mundo": as invejas no interior da Igreja são muito menos graves, mas se apresentam de uma forma sutil.
A tentação se expressa habitualmente em forma oblíqua. Manifesta-se com a tendência em encontrar e assinalar, à primeira vista, defeitos em todas as iniciativas pastorais e em atividades apostólicas que se destacam e se sobressaem do comum. Se despreza toda forma de apostolado que tem algo de diferente, com comentários, piadas, etc. Também no corpo apostólico da Igreja se sofre a tentação do corpo social: defender a mediocridade e derrubar tudo o que se sobressai e que, por isso, questiona. A tentação se manifesta também mediante o cinismo diante de trabalhos, iniciativas ou apóstolos que querem viver radicalmente seu chamado à evangelização. O cinismo é a expressão mais sutil da inveja; é seu melhor disssolvente.
Agora, em alguns casos, o demônio da inveja apostólica se revela em forma direta, em formas de rivalidade e de competição latente ou aparente. Esta tentação atua em todos os meios e níveis, normalmente dissimulada pelo "zelo pela verdade", pelo "serviço do Reino" etc., palavras que escondem, às vezes, inveja pela reputação ou pelo êxito de um companheiro de apostolado.
Este demônio age também entre os teólogos, campo em que nem todo conflito ou disputa teológica está inspirada na busca da verdade; costuma haver questões pessoais misturadas. Age nos meios pastorais, em todos os níveis. Quantas vezes, apóstolos valiosos, projetos e experiências prometedoras são marginalizados, postergadas sem motivo, ou ignoradas, por questões de rivalidade!
O demônio da inveja pastoral leva a considerar projetos ou atividades de outros, como uma ameaça à própria influência apostólica. Quando se cai nesta tentação, o relacionamento apostólico fica inevitavelmente comprometido.

16.Perder o sentido do humor

Este demônio dramatiza e faz vítimas. Neste caso, o sentido do humor consiste em ver o lado bom das coisas, ainda que aparentemente de todo negativas; consiste em aprender a relativisar, a olhar "desde fora" as situações que nos afetam. O sentido do humor, por isso, ajuda a equilibrar as coisas, a não dramatizar e não ver tudo de maneira trágica. Ter sentido de humor é não fazer-se de importante, não levar a sério títulos, nem os problemas, nem os conflitos pastorais e eclesiais. É rir sadiamente da gente mesmo, das situações e de seus protagonistas.
O demônio que arranca ou adormece o sentido do humor, arrasta progressivamente o apóstolo à crítica sistemática, ao azedume, ao complexo de vítima que dramatiza tudo o que o afeta desfavoravelmente. O apóstolo que se dá muita importância, que acha seu trabalho o máximo, que busca cargos importantes ou que simplesmente se leva muito a sério, perde a simplicidade evangélica e, com ela, o sentido cristão do humor.
O apostolado requer o sentido do humor. A Igreja também precisa de humor e, obviamente, todos nós. O sentido do humor é uma qualidade tão humana quanto cristã. Trata­-se de uma qualidade presente nos santos, nos apóstolos e nos missionários mais atraentes. Teve importância no apostolado de ontem e tem no de agora.
De fato, em tempos de particular tensão e conflito na vida apostólica e da Igreja em geral, o sentido do humor se torna imprescindível. Por isso, contribuir com seu desaparecimento da vida eclesial e pastoral constitui uma tentação permanente, um demônio. Os cismas, heresias, dissidências, divisões, conflitos insolúveis e falta de diálogo e de comunhão são atitudes de pessoas que normalmente perderam o sentido do humor; que dão grande importância a si mesmos e às suas idéias. Sem sentido de humor, qualquer contradição, reprovação ou questionamento provindos da Igreja, é um drama, uma perseguição. Portanto, um apóstolo sem sentido de humor é um apóstolo vulnerável e débil.
Em última análise, o sentido do humor forma parte da fortaleza cristã e, certamente, a propicia.


 

Este texto é um extrato do livro do teólogo chileno Segundo GALILEA, Tentación y Discernimiento, Narcea, Madrid 1991, p. 29-67.